
“Redes de Praia” [1]
O esporte tinha duas vitrines em Nictheroy: a primeira, o próprio clube, berço para o seu desenvolvimento; por último, a Praia de Icaraí, aonde até nossos tempos transformou-se num quintal recreativo. Embora houvesse discussões quanto ao placar, a escolha dos times, os lances dúbios, tudo era encarado da forma mais amistosa possível, sendo raríssimos os casos de desavenças graves. O vôlei era praticado essencialmente por lazer e dispensada a arbitragem: os próprios jogadores se policiavam e assinalavam suas próprias faltas. Aliás, a regra era devidamente modificada para que se permitisse um jogo fluido e alegre, com ralis longos: “valia tudo, exceto tocar na rede e xingar a mãe!” Em meados da década de 50 e durante muito tempo, o voleibol atraía muitos adeptos aos domingos para a praia de Icaraí. Eram várias as Redese algumas sobressaíam em valores técnicos de seus participantes, sem contudo tirar o brilho das longas e animadas partidas. Os grupos eram formados segundo suas próprias simpatias e a finalidade era o lazer após uma semana de trabalho. O trabalho aos sábados só findou para a maioria nos primeiros anos da década de 60, o que despertou mais ainda a prática das peladas na areia.
Além do Rio, também em Nictheroy praticava-se o voleibol na praia, especialmente aos domingos, o que contribuía, não só para um bom preparo físico – jogar na areia fofa é muito estafante – como acrescentava excelente desenvolvimento tático, uma vez que “valia tudo” nas partidas. Para colocar a bola no chão da quadra adversária era preciso, além de tudo, imaginação e criatividade. Esta prática favoreceu e fez diferença durante muitos anos nos confrontos contra paulistas ou mineiros. Em suma, eram quatro treinos por semana – acrescentou-se o sábado a partir do início da década de 60 –, sendo que o preparo físico era dado pela prática na areia. Formava-se uma geração bastante competente que, em disputas na década seguinte contra atletas de seleção do Rio competiam de igual para igual, muitas vezes até em vantagem. Foi o período dos torneios de praia do Jornal dos Sports nas areias de Copacabana.

Circo na Praia. A rapaziada, já não tão novinha assim, se reunia aos domingos na praia de Icaraí, na Rede do IPC, entre as ruas Álvares de Azevedo e Pereira da Silva e ali era armado um verdadeiro “Circo”, atraindo passantes e famílias, que se divertiam com as “travessuras” dos velhinhos. Sua algazarra, alegria e espontaneidade eram contagiantes, atraindo sorrisos e olhares de simpatia.
Almoço dos Crentes. Falar da Ala dos Crentes é relembrar um passado que não volta mais. Todo último domingo de cada mês realizava-se o almoço no clube IPC. O Crente era designado na reunião anterior para pagar todas as despesas do almoço seguinte, sempre em clima de grande alegria e descontração. Uma crônica (provavelmente de 1959) de um observador privilegiado – Francisco Pimentel (meu tio), o Chicão, ou Peru –, retrata a vida e o humor de quantos apreciavam o voleibol e faziam dele um momento de alegria, de encontro e confraternização:
“Voleybol Society – Manhã de sol radiante. Domingo. Em nosso footing habitual divisamos, em certo ponto da praia, tremenda e assustadora aglomeração. Gritos histéricos. Vaias. Correrias. Tiros… A princípio julgamos tratar-se de algum conflito provocado, talvez, por banhistas conquistadores. Qual a minha surpresa, quando no meio do burburinho, notei pela originalidade da figura, um tipo que poder-se-ia considerar como sósia do Governador Jânio Quadros. Aspecto tenebroso. Cabelos desgrenhados. Bigode vassoura. Não era briga. Não havia mortes. Apenas disputava-se uma peleja do simpático esporte da rede, o voleibol, na quadra que é já conhecida como “O Circo”. Muito antigo o espetáculo. Cerca de vinte anos de atividades incessantes. O dono do “CIRCO” é o tipo que tivemos ensejo de salientar. Quando moço ainda jogava bem, gritava pouco. Agora, velho alquebrado, joga pouco e grita muito. A sua chegada no picadeiro é espetacular. Muletas a bordo, esparadrapos, remendos etc., mas, por incrível que pareça, sem dúvida um paradoxo, é um tipo querido, estimado, e imprescindível. Sem ele o espetáculo é frio, insosso. O movimento é dele, e a vitória sempre. Como todo “Circo” este também tem, além do clown principal, a famosa macacaaranha, sósia de Jânio Quadros, vários espécimes de notável raridade. Senão, vejamos. O Elefante Marinho que é o Boto, cortador emérito. Um Padeiro, estilista. Um Pretinho, saliente, que nas horas vagas é dentista e que levanta muito bem… a sua cadeira profissional. Um Alemão, cortador (atacante) notável, que dorme, às vezes, na quadra, acompanhado de um “…(? ilegível)) de pobre” para cuja deglutição conta sempre com a solidariedade do Piolin. Um jovem lunático, também cortador, mas que tem a mania de ser locutor de rádio (imita Oduvaldo Cozzi). O outro louco da rede, companheiro do Joãozinho Biruta, é o player do Flamengo que corta quando levanta e levanta quando corta, dono de excentricidades e fan do Alemão. Outro figurante, um tipo apolônico, mas conhecido como Mr. América (embora seja luso) e que quando chega na rede (é levantador… de sacos no cais do porto) é um verdadeiro figurino, short estampado, cordão de ouro, óculos ray-ban, joelheira, caneleira, coxeira, pulseira, dedeira, balangandãs e gorro. Enfim, é um desfile interminável de beldades. Mas o que merece, realmente, a nossa atenção é o desenrolar do espetáculo. Primeiro, a escolha dos times. Jânio de revólver em punho, no meio do campo, selecionando os figurantes. Nem um pio. Todos seguem cabisbaixos as suas ordens. Inicia-se o prélio. Barulho surdo, como a queda de um fardo de “carne seca”: Jânio foi defender uma cortada e estatelou-se na areia. Primeiro ponto para o adversário. Uma cortada do Boto. Procura-se o Miquinho e o menino está enterrado na areia, mas defendeu a cortada.”
Quem é Quem
- Jânio Quadros e macaaranha é Aguinaldo Mendonça, o dono do Circo (da Rede) e o mais antigo; nascido em 1911, foi o principal informante dessas saudosas declarações. Residia em Icaraí, casado com Olga desde 1949, veio a falecer em setembro de 2004.
- Elefante Marinho ou Boto, ou Lula (Lulu), ou melhor, Luís Carlos Silva Santos, mergulhador, mas que sofria do coração, sobrinho de Carmela Dutra, mulher do presidente Dutra (1945-50).
- Padeiro, um estilista, era o José Fernandes, também levantador da equipe do IPC.
- Pretinho, o capitão-dentista do Exército, é Alcides Saraiva, único fundador do IPC ainda vivo.
- Alemão ou Berner, tremendo cortador, era Bernard Wohrle.
- Piolin era Hugo Limoeiro.
- Jovem lunático, imitador do Oduvaldo Cozzi, o mais famoso locutor de partidas de futebol, também conhecido por “Joãozinho Biruta”, era alto, elegante…
- Player do Flamengo, não era outro senão Ornani.
- Mr. América, um tipo “apolônico”, era Manoel Loureiro, verdadeiro figurino…
- Miquinho, o Nelsinho, canhoto, exímio levantador, também companheiro (do Autor) de jornadas de voleibol no início da década de 60 em torneios de vôlei de praia (6×6) do Jornal dos Sports, no Rio de Janeiro.
[1] Local na praia onde era armado o campo de jogo.



