Xadrez e Voleibol

Por que não começar a ensinar o jogo de xadrez antes de qualquer desporto? O xadrez que impõe tudo aquilo que é essencial ao desenvolvimento do músculo do intelecto – “O rigor das definições, a precisão das leis e as abstrações disciplinadas” –, além do lúdico, que no caso é essencial. Não é à toa que em muitos países o xadrez é obrigatório nas escolas.

Sabe-se que as crianças têm uma “quantidade de canais“ menor que a dos adultos. Consequentemente, a sua capacidade de prestar atenção aos acontecimentos, memorizá-los e reagir a eles é menor que a do indivíduo maduro. Talvez por isso que crianças pequenas deixam de resolver muitos problemas por não dispor da capacidade de processamento de informação necessária para fazê-lo. O grande mestre de xadrez, fora do seu campo específico de perícia, sofre as mesmas limitações de processamento de informação que todos nós. Suas proezas de percepção e memória são específicas ao tabuleiro e às peças de xadrez. Ao olhar o tabuleiro, o que o perito – mas não o iniciante – “vê” são configurações de peças, ou, “nacos”, que representam padrões conhecidos e não peças isoladas. Isso também significa que ele é mais capaz de planejar e pensar com antecipação, porque sua representação ou modelo do tabuleiro é forte, precisa e perdurável. Por isso, também é capaz de pensar com maior clareza e profundidade.

Jogo de xadrez ensina... Minhas experiências, certamente enriquecidas pela prática do jogo de xadrez na infância, levaram-me a aprender a interpretar o jogo, muitas delas transformadas em conselhos que transmitia aos companheiros para que “memorizassem” a posição dos adversários na quadra a cada conclusão de jogadas. Assim, a rapidez com que somos capazes de codificar o que vemos, a organização do que vemos e a quantidade de informações que conseguimos memorizar estão todas relacionadas com a estrutura de nosso conhecimento, e são sintomáticas dessa estrutura. Em inúmeros lances de uma partida de voleibol ou de qualquer desporto, há momentos em que é imprescindível esta caracterização com o auxílio da memória, só possível por um perito. Por exemplo, em jogos de peteca dos quais participo, “vejo” com muita clareza a distribuição dos adversários na quadra com o auxilio da visão periférica e, em outros momentos, quando é impossível, pela memória, o que contribui para um discernimento tático eficaz.

Um dado informal, mas importante: a incapacidade de o jogador de xadrez identificar, descrever ou expressar de forma ordenada e sistemática o modo como eles “vêem” o tabuleiro. Certamente, boa parte de nossa perícia é desse tipo. O conhecimento é ”tácito”, integrado no modo pelo qual agimos e trabalhamos, e não é fácil sistematizar ou descrever para os outros. Se não reconhecerem que os novatos não percebem as situações da mesma maneira que eles, os peritos podem considerar seus problemas com perplexidade e até com fúria. Não deve ser motivo de surpresa, p.ex., que, mesmo quando o perito indica aquilo que deve ser observado, o novato possa não ser capaz de “absorver” o que lhe é mostrado, por não ter o conhecimento anterior necessário que o habilitaria a perceber e memorizar configurações. Neste caso, também não é de admirar que a capacidade que o perito tem de agir e pensar seja mais certa, fluente e precisa que a do novato. No caso do voleibol, ter sido um atleta pode ajudar na tarefa de ensinar, mas ter sido um atleta de alto nível, nem sempre. Pelo que foi exposto, o ex-atleta não consegue entender porque seu aluno não consegue realizar determinada tarefa. O que para ele era tão fácil torna-se difícil de explicar. A visão das crianças como processadores limitados de informação, que ainda têm de aprender ou adquirir perícia, representa uma terceira imagem da criança enquanto ser que aprende e pensa. A capacidade da criança num determinado campo, seja o xadrez, a aritmética, a leitura ou o que for, pode não refletir sua capacidade em outros campos, caso sua perícia nas diferentes disciplinas e atividades seja diferente. Esta é uma concepção que admite que a percepção, a memória, o conhecimento e a compreensão estão profundamente relacionados e se modificam com a aprendizagem e o desenvolvimento.

Conclusão

Recomendo que nas aulas de qualquer esporte o professor empregue uma grande variedade de estímulos que possam vir a incrementar o desempenho das crianças na fase adulta. Ao criar condições e relações entre a especialização e a qualidade final da performance, estaremos proporcionando vivências variadas para a formação de uma memória motora ampla que, certamente, se manifestará mais tarde.

Repetir, Só Dando um Passo à Frente

Reporto-me ao comentário de Arlindo Lopes Corrêa, em 15.1.2010, no postLesões e receitas de treinamento no voleibol”. Destaco sua mensagem final:

“O treinamento deve ser diversificado ao máximo, evitando a monotonia, o tédio e explorando novas possibilidades, novas técnicas. (…) sou favorável a que os atletas tenham experiências variadas, culturais e intelectuais, fora do voleibol, pois isso vai contribuir para uma cosmovisão útil em qualquer situação de vida, dentro e fora da quadra. Repetir, só dando um passo à frente, sempre! E isso não é mais repetir… É evoluir”.

 Esta última observação chamou-me deveras a atenção pelo seu valor e alcance psicológico, pois se enquadra perfeitamente na teoria dos reflexos condicionados. Procurarei neste espaço contribuir para um exame mais profundo para aqueles que pretendem compreender o alcance da questão título deste post. Dadas às circunstâncias variadas porque passam os treinandos ao longo de suas vidas, seus interesses e emoções, estarei aqui analisando somente os aspectos psicológicos inerentes que comporão as decisões do pedagogo (ou treinador), além de acentuar a importância da memória humana na atividade desportiva, tão desprestigiada por muitos.

Memória

A memória ajuda a definir quem somos. Na verdade, nada é mais essencial para a identidade de uma pessoa do que o conjunto de experiências armazenadas em sua mente. E a facilidade com que ela acessa esse arquivo é vital para que possa interpretar o que está à sua volta e tomar decisões. Testes podem mostrar a qualquer um que memorizar pode significar essencialmente duas coisas diferentes: ou isso é uma simples decoreba da reação ou trilhamento do caminho ou o estabelecimento de uma ligação sempre nova entre o que já foi decorado e o que ainda cabe decorar
A natureza psicológica da memória

Quando se fala em memória no sentido da palavra amplamente empregada temos em vista dois processos inteiramente diversos. A velha psicologia já distinguia duas espécies de memória: a memória mecânica e a lógica ou associativa. Com toda razão os psicólogos assemelhavam esse processo a uma trilha de caminho e falavam do trilhamento dos caminhos como fundamento para a acumulação da experiência individual. Toda soma de habilidades individuais, hábitos, movimentos e reações de que dispomos não passa de resultado desse trilhamento. Um movimento muitas vezes repetido como que deixa vestígios no sistema nervoso e atenua a passagem de novas excitações pelos mesmos caminhos.

Outra forma de memória é a chamada memória associativa, ou da associação de absolutamente todos os movimentos. Por associação entende-se um vínculo de reações no qual o surgimento de uma delas acarreta necessariamente o surgimento de outra. Na sua forma mais simples, a teoria das associações antecipou a teoria dos reflexos condicionados que, no fundo, é um caso particular e uma modalidade de associação. Seria correto considerar o reflexo condicionado como um caso de associação incompleta em que o vínculo se fecha inteiramente não entre duas reações, mas entre o estímulo de uma reação e a parte responsiva da outra.

A velha psicologia sabia que o estabelecimento de uma associação depende da experiência e que a associação não significava outra coisa a não ser um vínculo nervoso de reações que se estabelecem à base de uma ligação dada na experiência. Dessa forma, a velha psicologia também sabia que toda a riqueza do comportamento individual surge da experiência.

 

Processamento de informação

Em psicologia, é justo afirmar que a abordagem do processamento de informação fornece uma linguagem para a construção de “modelos” de áreas específicas da atividade humana (explica como resolvemos os problemas matemáticos, p.ex.). Houve uma mudança da descrição da atividade humana de uma expressa em termos de respostas a estímulos para explicações que falam de ações mais ou menos habilidosas e dirigidas a determinados objetivos.
Teoria do processamento de informação

Expressa os “objetivos”, a “atenção” e o “controle” e nos convida a conceber o comportamento como algo dotado de um “propósito”. O “mesmo” objetivo pode ser alcançado por diferentes meios. Adapto os meios aos fins, na situação em que me encontro, de um modo que reflete minha interpretação da situação na qual me encontro, e isto exige um controle contínuo, muito embora eu não tenha necessariamente a consciência de que estou exercendo um controle o tempo todo. Essa teoria levou ao desenvolvimento de conceitos como os de “planos”, “habilidades” e “estratégias”, bem como o de ”perícia”.

 

Perícia

Usado na psicologia em referência à atividade mental. O termo “habilidade” normalmente é empregado para expressar a qualidade de um comportamento manifesto (habilidade no futebol, num arremesso no basquete…). Ambos têm elementos comuns, tendo a ver com controle do tempo, autocontrole, detecção de erros e organização. Chama-se a atenção ao fato de que o conhecimento e a ação, ou os conceitos e procedimentos, são dois aspectos de UM ÚNICO processo. Se compararmos o desempenho de um perito com o de um iniciante, p.ex., revela não somente diferenças de rapidez, fluidez e precisão nas ações, mas também na estrutura da percepção, memória e operações mentais dos envolvidos. A partir deste ponto de vista, os atos de aprender a aprender, pensar e comunicar-se são explicados em função da aquisição de diversos tipos de perícia. Os peritos numa disciplina, jogo, esporte, arte ou qualquer outra coisa são capazes de perceber e memorizar, de maneira mais precisa e completa que o não-perito, qualquer fenômeno pertinente a sua área de perícia. Na medida em que somos peritos em realizar nossas intenções numa situação que “se presta” à consecução de nossos objetivos, geralmente temos um bom desempenho. Somos capazes de pensar e agir de modo relativamente rápido, desembaraçado e preciso. Por isso, temos também maior probabilidade que o novato de perceber quaisquer desvios em relação às nossas expectativas. A perícia estrutura o processo de percepção e memorização. Isso torna o pensamento e a ação rápidos, desembaraçados, precisos e sensíveis ao erro, à novidade e aos acontecimentos anormais.

Diante do exposto,

— Como deverá o professor (treinador) conduzir-se em relação aos seus alunos ou atletas?

— Como e quando as crianças generalizam o que lhes é ensinado, aplicando-o a outros problemas?

(L. S. Vigotski, Psicologia pedagógica; D. Wood, Como as crianças pensam e aprendem)