
O Alto Nível
Contam-se nos dedos os atletas canhotos que alcançam o maior nível técnico para atuarem na seleção representativa de seu país. Iria mais longe ainda, afirmando sem medo de errar, desde os primórdios em 1949, quando se realizou o 1º Campeonato Mundial masculino, em Praga, Tcheco-Eslováquia. Evidentemente que não estava lá para ver, mas não é tão difícil calcular a sua inexistência. Minha primeira constatação só se efetivaria no Campeonato Mundial no Rio de Janeiro, em 1960, em que somente a equipe da Romênia apresentava um canhoto entre os seus titulares.
Inicio minhas explicações e conselhos não só ao atleta de voleibol canhoto, mas aos professores e treinadores, dizendo duas coisas que devem ficar gravadas. Primeiro não sou dono da verdade, mas tenho muita experiência nesse assunto, pois apesar de não ser canhoto, sempre arremessei qualquer objeto acima da linha dos ombros com a mão esquerda; isto é de nascença e nunca tive explicação. Nunca fui obrigado a escrever com a outra mão pelos meus pais e professores. Nada disso! Em segundo lugar, sou um autodidata e eu mesmo me treinei, inclusive estabelecendo objetivos a alcançar e as formas de consegui-los. Em suma, criava meus próprios ensaios e importante, vigiava as execuções nos jogos, sempre buscando aprimoramento e excelência para a criação de novos gestos. Mais não fiz porque atuei por pouco tempo em campeonatos e o desconhecimento dos treinadores em aproveitar um canhoto em sua equipe. Sobre isto estarei falando um pouco mais uma vez que julgo importante primeiro instruir o treinador e, depois, o atleta, pois só assim ele saberá tirar melhor proveito para a sua equipe. Tenham então um pouco de paciência com esse velhinho contando suas histórias a respeito.

Evolução. Tenho poucas referências de outros companheiros canhotos. Da maioria deles, vi-os apenas atuar. No Fluminense, surgiu o Celso Kalache, que chegou à seleção brasileira, foi campeão carioca em 1971 pelo Botafogo, tendo se radicado posteriormente nos EUA. Atualmente, os mais famosos são André Nascimento e Márcio Araújo, um moço cearense que se deslocou até Niterói (talvez em 1994), hospedou-se na casa de um companheiro (Frederico) para iniciar-se no Vôlei de Praia. Treinou um ou dois meses comigo na Praia de Icaraí, desfez a dupla e retornou à Fortaleza. Tornou-se um grande campeão, inclusive medalhista olímpico. Estou tentando um encontro virtual com ele para conversarmos a respeito.
Outros Famosos. Peço desculpas aos leitores por qualquer omissão. Fica um lembrete: enviem destaques – nomes, atuação – para esta galeria.
Mundo: 1) Horatius Nicolao, romeno, atuou no Mundial de 60 no Brasil; 2) Andrea Sartoretti, italiano, medalhista em três Jogos Olímpicos entre 1966 e 2004; 3) Cecília Tait, peruana, medalha de prata na Olimpíada de Seul, 1988; 4) Regla Bell, cubana, eleita a melhor atleta do século XX.
Brasil: Além dos dois já citados, 3) Franco José Vieira Neto, vôlei de praia; 4) Ricardo Bermudez Garcia, Ricardinho, levantador. Entre as mulheres, 5) Heloísa Roese; 6) Regina Vilella (ambas da seleção na década de 70); 7) Leila Gomes de Barros, vôlei de praia e indoor. Ainda citaria 8) Antônio Vaghi, o Bomba, campeão botafoguense com breve atuação no selecionado brasileiro nos anos 1960.
Quem sabe treinar um canhoto? A indagação sugere ainda o treino dos vários fundamentos, e não só o ataque. Como perceberam, minha memória está restrita a esses sete nomes no Brasil. E por que não temos mais canhotos no alto nível? Peço que antes de continuarem na leitura retornem ao segundo parágrafo e percebam a importância de os professores e treinadores saberem lidar com os “diferentes”. Vão perceber a partir dessas histórias como é difícil a progressão esportiva de um canhoto, especialmente nos desportos coletivos. Se conseguirem ultrapassar as barreiras na Iniciação e Formação, provavelmente na fase adulta tendem a desistir, haja vista não o preconceito, mas a ignorância em saber lidar com um “diferente” e tirar proveito máximo dessa qualidade sempre oportuna. Por isto, tenham paciência e prestem atenção nas histórias a seguir.
Histórias
1. Quando comecei a treinar e a jogar competitivamente, tinha 18 anos de idade e já atingira a altura de 1,92m, acima da média para a época (1958). Eu jogava basquete e futebol na escola e, aos 16 anos interessei-me pelas peladas de voleibol nos momentos de aulas vagas ou nos recreios. Não sabia como atacar por cortada (batida com uma das mãos); fazia-o saltando e colocando a bola de toque com ambas as mãos na quadra adversária. Observando os mais velhos atacando com uma das mãos, tentava copiar-lhes os movimentos, mas tinha entraves descomunais, primeiro por só fazê-lo com a mão esquerda; segundo, pela alternância e imponderabilidade dos levantamentos – não sabia para onde o colega lançaria a bola. Todavia, com os sucessivos ensaios, descobri formas de superar os obstáculos colocando-me quase sempre em posições favoráveis aos deslocamentos que antecediam o ataque. E outro fator complicador, não sabia ainda saltar com ambos os pés juntos – a cortada tradicional -, mas sim com corrida e salto numa das pernas (a direita), herdado do movimento do basquetebol, denominado entrada em bandeja, ou simplesmente, bandeja. Este é o movimento empregado por atletas de ataque de meio (III) quando realizam a cortada ou bola china, isto é, ataque com corrida e salto numa perna, do centro para a lateral direita da quadra. Atualmente, é exclusividade nas equipes femininas. Em outras épocas – desde 1940 e até final de 50 -, especialmente entre equipes que atuavam no sistema 3 em 3 (três levantadores e três cortadores), era frequente este tipo de ataque com corrida também entre os homens. Aumentava a impulsão do executor, dificultava o bloqueio – invariavelmente simples – e complicava a defesa, uma vez que era fácil a mudança de direção do ataque com leve giro do corpo no ar. Coincidiu com a fase de mudanças de batidas na bola: abandono das puxadas (mão aberta e condução de cima para baixo) ou mão fechada (soco). Interessante é que fui convidado a atuar numa equipe treinada pelo saudoso Bené por alguns colegas do colégio. Entretanto, já nessa época, me destacava pela eficiência nos jogos colegiais, sem jamais ter um treinador ou professor a orientar-nos. A equipe formada no clube já contava com um verdadeiro canhoto, meu colega de escola. O Bené exultou de alegria, pois conseguira reunir os dois na mesma equipe, o que propiciou bastante desconforto às equipes adversárias.
2. Recordo-me que o único treinador que teve preocupações defensivas contra a possível presença de um canhoto numa equipe adversária foi o Professor Paulo Emmanuel da Hora Matta, quando de sua estada à frente da seleção brasileira no final da década de 60 e início dos anos 1970. Perguntou-me se eu poderia participar dos treinos para que os atletas apurassem o bloqueio contra um canhoto. Acedi ao convite, mas nunca mais voltou a falar sobre o assunto. Não pude ajudar, foi uma pena!
3. Em 1982, no campeonato mundial realizado na Argentina e vencido pela URSS, o Brasil perdeu uma partida para a Tcheco-Eslováquia numa das fases preliminares. O destaque desse encontro foi um atleta tcheco canhoto, que não encontrou qualquer dificuldade para superar o bloqueio brasileiro, inclusive atacando da entrada da rede (IV). Não era um atleta alto e as equipes não atuavam praticamente com fintas.
4. Creio que foi no final da década de 70 quando presenciei um jogo de uma equipe japonesa masculina que participava de um torneio quadrangular no Rio. Foi em Niterói, no ginásio do Caio Martins. A equipe japonesa contava com um atleta canhoto, muito talentoso e de altura mediana, típico japonês. Na oportunidade o que me chamou a atenção foi a atitude audaciosa e inteligente do treinador de aproveitá-lo em quase todas as combinações de ataque. Invariavelmente ele era o personagem que finalizava, não importa em que posição da rede, após realizarem as fintas correspondentes. Surgia vindo de não sabemos de onde, para concretizar o ataque sem bloqueio. Isto é, toda a armação da equipe a partir da recepção estava já construída com esta finalidade. Com certeza o treinador lamenta até hoje não ter outro canhoto na sua equipe.
Vejam outras histórias em Treinamento de Canhoto – I, publicado em 20.2.2010.
(continua)
