Como se Adquire Habilidade? (Parte II)

Desenho: Beto Pimentel.

Formação de bons hábitos

“A prática não leva à perfeição; uma prática perfeita é que leva à perfeição.”

Como nada é definitivo especialmente em matéria de Educação, cito algumas considerações de autores consagrados em torno do significado pedagógico dos exercícios e sua aplicação. O leitor atento poderá discernir e optar pelas buscas em seu processo educativo e o melhor caminho a seguir. Aliás, caminhos, uma vez que nunca é demais pesquisar e tentar. Boas leituras.

Desde muito tempo, ainda atuava como técnico ou atleta, preconizava que não se deveria treinar muito, mas sim com qualidade. Imaginava que realizar demasiadas vezes um mesmo movimento para criar o hábito o executor poderia incorrer em dois perigos: o desgaste nervoso pelas repetições contínuas e permanentes; e a qualidade ou excelência na prática, isto é, a cada nova tentativa ou ensaio, buscar a perfeição nos gestos. Em suma, a AUTORREGULAÇÃO.

Treinamento reflexivo. Este tipo de treinamento, que o autor denominou treinamento profundo, na prática nos revela a sensação de explorar um quarto escuro e desconhecido. Começamos devagar, esbarramos na mobília, paramos, pensamos e começamos de novo. Lentamente e com certo incômodo, exploramos o espaço repetidas vezes, atentando aos erros, ampliando aos poucos a área do quarto a nosso alcance, desenhando um mapa mental do lugar até conseguirmos nos mover por lá rapida e intuitivamente. A maioria de nós faz um pouco desse treino. O instinto para ir mais devagar e dividir as habilidades em seus componentes é universal. Era o que diziam nossos pais e treinadores quando nos aconselhavam: “Um passo de cada vez”. Ocorre que os professores que adotam essa metodologia, fazem-no segundo três dimensões. Primeiro, os participantes encaram a tarefa como um todo – como um grande bloco, o megacircuito. Segundo, dividem esse bloco nos menores blocos componentes possíveis. Terceiro, brincam com o tempo, retardando a ação, para depois acelerá-la, a fim de conhecer sua arquitetura interna. (D. Coyle, O código do talento)

Significado pedagógico. Ensina-nos a Psicologia que o homem é um complexo vivo de hábitos e que em seu comportamento – espécie de reações organizadas – apenas 0,001 dessas reações é determinada por alguma coisa além do hábito. Por isso o objetivo do professor é infundir no aluno hábitos que na vida possam trazer proveitos. Pode-se afirmar, então, que 99% dos nossos atos são executados de modo automático ou por hábito. Todos os nossos atos e até mesmo as falas comuns consolidaram-se em nós graças à repetição em forma tão típica que podemos vê-los quase como movimentos reflexos: para toda sorte de impressões temos uma resposta pronta, que damos automaticamente. Seria de bom alvitre não deixar de considerar o significado pedagógico dos exercícios a serem propostos  (o grifo é meu) na formação de bons hábitos. Para a aquisição de um comportamento consciente tenha-se em mente que antes de cometer algum ato temos sempre uma reação inibida, não revelada, que antecipa o seu resultado e serve como estímulo em relação ao reflexo subsequente: “Todo ato volitivo é antecedido de certo pensamento, isto é, acho que pego um livro antes de estender a mão para ele”. O fato básico é que a noção anterior do objetivo corresponde ao resultado final. Não estaria implícito aqui todo o mistério da vontade? (David Wood, Como as crianças pensam e aprendem.)

Nível de exigência. Esta atitude do professor, que podemos denominar nível de exigência (ou de tolerância), nada tem a ver com aspectos disciplinares, mas, ao contrário, calcada em conhecimento prático e científico. O atleta deve internalizar em sua memória o movimento completo. Por outro lado, imagine o treinador que permite e aplaude atuações não condizentes com o nível técnico desejado. Para todos os efeitos, trata-se de complacência e, talvez, insegurança no trato com atletas, especialmente os de ponta. Presenciei vários casos no Rio de Janeiro, inclusive com atletas medalhistas olímpicos de ouro.

Exercícios-chave, educativos, transferência (transfert). Aconselha-nos Jean Le Boulch o abandono das tentativas inúteis de procurar exercícios-chave com alto poder de transferência. Suas observações tenderam a mostrar que a aprendizagem adquirida relativamente a uma parte da situação não o é relativamente a esta mesma parte inserida num todo novo. Em outras palavras, “as partes reais do estímulo objetivo não são necessariamente partes reais da situação vivida pelo indivíduo”. A consequência desta opção na aprendizagem é imediata e pode ser traduzido por aquilo que expressou M. RYAN (EUA), treinador de atletismo por ocasião de um congresso mundial após uma pergunta que lhe solicitava exercícios próprios para facilitar a aprendizagem do salto com vara: “Apenas o salto com vara prepara para o salto com vara e qualquer exercício que se lhe avizinhe, quanto mais próximo, tanto mais prejudica a aprendizagem”. Esta é uma concepção a que nos associamos de bom grado, mas repõe em discussão a utilização dos chamados exercícios educativos que ainda precedem a aprendizagem de um gesto técnico complexo nas progressões de muitos instrutores.

Nota – Atenção que se atribui muitas vezes à palavra talento um sentido vago e repleto de conotações igualmente imprecisas, sobretudo em se tratando de jovens. Por talento definamos em sentido estrito: “a posse de habilidades repetíveis que não dependem do tamanho físico”.

E por fim, como você procederia para criar uma FÁBRICA DE TALENTOS  com um grupo de alunos? E se este grupo fosse constituído de 40 ou 240 crianças? Que exercícios devem ser propostos? Com que significado pedagógico?

Exercícios (II) – Bons Hábitos

Formação de bons hábitos . Diz-nos a Psicologia que o homem é um complexo vivo de hábitos e que em seu comportamento – espécie de reações organizadas – apenas 0,001 dessas reações é determinada por alguma coisa além do hábito. Por isso o objetivo do professor é infundir no aluno hábitos que na vida possam trazer proveitos. Pode-se afirmar, então, que 99% dos nossos atos são executados de modo automático ou por hábito. Todos os nossos atos e até mesmo as falas comuns consolidaram-se em nós graças à repetição em forma tão típica que podemos vê-los quase como movimentos reflexos: Para toda sorte de impressões temos uma resposta pronta, que damos automaticamente. Seria de bom alvitre não deixar de considerar o significado pedagógico dos exercícios a serem propostos na formação de bons hábitos. Para a aquisição de um comportamento consciente tenha-se em mente que antes de cometer algum ato temos sempre uma reação inibida, não revelada, que antecipa o seu resultado e serve como estímulo em relação ao reflexo subsequente: “Todo ato volitivo é antecedido de certo pensamento, isto é, acho que pego um livro antes de estender a mão para ele”. O fato básico é que a noção anterior do objetivo corresponde ao resultado final. Não estaria implícito aqui todo o mistério da vontade? (D. Wood)

Primeiro movimento. Quando penso em apanhar uma bola o estágio conclusivo depende do primeiro passo: de preparar-me em expectativa. A execução do primeiro movimento determina se toda a ação será executada. Logo, na minha consciência deve haver a noção sobre o primeiro movimento como réplica efetiva para todo o processo. Essa concepção do primeiro movimento que antecede o próprio movimento é o que constitui o conteúdo daquilo que se costumou denominar “sentimento do impulso”. Este sentimento é uma modalidade de concepção antecedente sobre os resultados do primeiro movimento físico que deve ser executado. Noutros termos, toda a vivência consciente e o desejo, incluindo o sentimento de decisão e de impulso, são constituídos pela comparação das concepções sobre os objetivos que competem entre si. Uma dessas concepções chega a dominar, associa-se à concepção sobre o primeiro movimento que deve ser executado. E esse estado de espírito passa ao movimento. Temos a sensação de que o movimento foi suscitado pela nossa própria vontade, porque o resultado final obtido corresponde à concepção anterior sobre o objetivo. (D. Wood)

Relembre um de seus despertares em dia frio e os momentos que antecedem sua saída da cama: com certeza já travou um diálogo interno – o famoso mais um minutinho – que o faz adiar o ato de se levantar. Ou, então, realize o seguinte experimento com um dos seus alunos: coloque-se a 3m dele segurando a bola numa das mãos, tendo o braço esticado na horizontal. Repentinamente, deixe a bola cair para que ele tente alcançá-la antes que toque o solo. Esta é sem dúvida uma ação capaz de formar novas reações no organismo do indivíduo e à sua própria experiência – a base principal do trabalho pedagógico. “Não se pode educar o outro, mas a própria pessoa educar-se. Isto implica modificar as suas reações inatas através da própria experiência (os ensaios, as resoluções de problemas). Afinal, não duvide, toda riqueza do comportamento individual surge das experiências”.

Finalmente, ainda considerando a formação de bons hábitos, indaga-se: “Qual o primeiro movimento físico que deve ser executado pelo atleta logo após o sentimento de impulso”? Algumas observações simples podem ser realizadas, por exemplo, a partir de lançamentos sucessivos da bola para um indivíduo que a recolherá ou rebaterá sem deixar tocar o solo. Dependendo da posição que ocupam em dado momento (frente um para o outro, ao lado ou atrás) a distância entre eles, a trajetória e a velocidade do lançamento, pode-se criar um novo hábito a partir de novos motivos. Na prática, conduzi o grupo de atletas do América a tomar consciência desse “despertar” para o sentimento do impulso. Desde o início de nossos treinos percebi que nenhum deles atentou para o fato. Imagino que raríssimos treinadores no Brasil percebam esse detalhe, fundamental para uma boa técnica de defesa. As primeiras instruções levaram-nos a descobrir e a tomar conhecimento teórico específico. A seguir, passamos à prática regular com exercícios simples e repetitivos – deixar a bola cair da mão a uma distância de 3m – e observar como e quando o indivíduo se desloca; em que altura toca na bola e, finalmente, como realiza este toque. A pouco e pouco foram formando-se novos hábitos e através de brincadeiras e desafios – componente emocional – alcançaram níveis nunca antes imaginados. Esses e outros detalhes contribuiram para ao final da temporada receberem os maiores elogios dos próprios adversários. Eu mesmo fui contemplado, quando o saudoso Adolfo Guilherme, técnico mineiro consagrado, indagou-me após um de nossos jogos: “O que fazem vocês que tanto defendem”? Em outras palavras, “Como treinam para defender tanto”?

O hábito é a nossa segunda natureza. Observe-se que o novo sistema de ações (primeiros ensaios), é de muita observação e estudos. A atenção é elevada. Cabe ao professor atenuar o sentido da atividade facilitando ao educando trilhar novos caminhos. Por isso, o exercício se desenvolve inicialmente de forma lenta e depois cada vez mais rápido, aperfeiçoando-se aos saltos, provocando mudanças na disposição das moléculas do cérebro: a parte principal consiste em fazer do sistema nervoso nosso aliado e não inimigo. Na medida do possível, tornar habituais e automáticos o maior número de ações úteis e combater a consolidação de hábitos que possam trazer danos à ação (correções necessárias e cabíveis). Quanto maior for o número de hábitos corriqueiros que consigamos tornar automáticos e fazer com que dispensem esforços desnecessários, tanto mais as nossas capacidades intelectuais superiores terão liberdade para a sua atividade a seguir.  (D. Wood)

Movimento imperceptível. Chamo a atenção para o detalhe da posição de pernas e pés do atleta, ainda na posição de expectativa e, a seguir, no seu primeiro movimento a partir do movimento de impulso. Invariavelmente, há o que chamo de um sobre-passo, uma troca de posição dos pés subrreptícia, imperceptível a olhares menos atentos e ao próprio executor. Ao que me parece, trata-se de movimento nocivo que deve ser eliminado da memória do atleta a favor de um outro, mais eficaz e benéfico (técnica).

Aprendizagem ativa. O que o professor diz na sala de aula não é de forma alguma pouco importante. Mas, o que os alunos pensam é mil vezes mais importante. As ideias deviam nascer na mente dos alunos e o professor devia agir apenas como uma parteira. Este é o clássico preceito socrático e a forma de ensino que a ele melhor se adapta é o diálogo socrático. “Não partilhe o seu segredo todo de uma vez só – permita que os alunos o adivinhem antes que o diga – deixe que descubram por si mesmos, tanto quanto for possível”. (Pólya)

Voltemos à praia. Pelos idos de 1997-98 fui convidado a treinar alguns rapazes e moças que desejavam figurar no Circuito de Vôlei de Praia do Banco do Brasil. Treinamentos diários, das 7h às 11h, de 2ª à 6ª e, aos sábados, compromisso de realização de um jogo sem interferência do técnico. Após ensaios de exercícios básicos durante um período razoável, passamos a sugerir que os próprios participantes incentivassem e corrigissem seus colegas, o que se tornou uma constante. Mais à frente, estimulamos que participassem e decidissem a formulação de um ou outro exercício específico, do qual tirava proveito de seus comentários – nada mais do que uma desejável atitude de pensamento.

Uma atitude interessante a este respeito – não partilhe o seu segredo todo de uma vez só – o que para nós trata-se de “uma carta na manga”, pude realizar com o grupo em relação ao gesto técnico utilizado em momentos de defesa de bolas que denomino ‘em situação limite’: arremessada à distância considerável, pouco veloz, ou mal rebatida por um companheiro. Como recuperá-las eficientemente? Após alguns ensaios e uma vez que não encontravam uma solução para efetuarem a defesa e o passe adjacente conversamos a respeito chegando-se à seguinte conclusão: 1) nos casos limites a recuperação da bola deve ser com o emprego de uma das mãos, e não de manchete; 2) a mão que tocar a bola deverá ser a que facilite o passe para sua própria quadra, recuperada para o companheiro; 3) o toque na bola propriamente dito deverá ser executado o mais rente ao solo, permitindo ganho de tempo para a decisão: “para onde enviar a bola”? Imagino ter feito o trabalho de parteira de que fala Pólya. Daquele grupo nunca me preocupei que despontasse um campeão, mas estou certo que ganharam muito mais como indivíduos conscientes com elevada auto-estima… E aprenderam a pensar.

Conclusão. A partir desse conhecimento e independentemente do assunto, caberá ao professor (ou treinador) despertar seus pequenos alunos para a aquisição de bons hábitos, entendidos aqui como “boa técnica”. Esta é Educação de Base, verdadeiro contributo ao desenvolvimento pleno do indivíduo para a vida.