Ser ou não ser, eis a questão
Adquirindo conhecimento. Atualmente ando interessado em estabelecer relações entre a natureza dos textos e aprendizagens. Daí minha motivação em ampliar o diálogo com os interessados. Percebo que o estilo que se imprima ao blogue tem a ver com a busca conjunta de um domínio dos assuntos. Alie-se a isto a própria natureza da mídia – escrita ágil, com poucas palavras, que informa enquanto analisa e faz crítica. É uma escrita que tem o ritmo incessante dos acontecimentos e compatível com a dinâmica da vida atual. No meu caso, isso me ajuda a ficar informado, atualizado e aprender. Fica a sugestão para os meus leitores, que agora são muitos, para que participem, indaguem, discutam e aproveitem esta excelente ferramenta em que se pretende aprender e a compartilhar algum conhecimento. Chama-se a isto “troca de experiências”.
Bola ou búrica? Sorte ou azar? Quando criança, jogávamos muito o jogo bola de gude e num determinado tipo era necessária a escolha antecipada que o menino deveria fazer: ele lançaria a bola sobre a bola do adversário ou diretamente na búrica (pequeno buraco no chão de terra)? Esta providência foi resultado de muitas discussões, pois até então o jogador lançava a bola e no que acertasse – bola adversária ou búrica – estaria valendo. A partir dali, passou-se a definir a escolha antecipada. Isto redundou em providências táticas, pois passaram a examinar o contexto e a decidir o que seria melhor para eles. Essa regra foi também inserida no jogo de sinuca: o jogador deve enunciar a priori em que bola vai jogar e até mesmo a caçapa em que a bola vai “morrer”.
Ace! Brasil campeão mundial! Essas lembranças me foram inspiradas pelo excelente trabalho do Professor João Crisóstomo sobre a final do Mundial de Voleibol de 2002 na Argentina entre Brasil e Rússia: placar 14X13 para os brasileiros, no quinto set. Giovane, atleta que até dois pontos atrás se encontrava na reserva foi encarregado do saque para o Brasil. A partir da posição um (I), próximo à linha lateral, lançou a bola para o alto e para o lado – em direção à posição seis (VI) – em um salto com deslocamento em diagonal surpreendente, sacou em direção à posição quatro (IV) da quadra russa. “Ace”! Brasil campeão mundial!
Faço pequeno reparo à descrição do lance, pois assisti à cena no vídeo marqueteiro do próprio Giovane por duas vezes, em Florianópolis. Segundo ele, Giovane, “senti no ar que deveria inovar e alterar a direção do saque”. A bola tocou o chão adversário sobre a linha lateral correspondente, entre as posições IV e V. Mas tal não importa, pois talvez minha memória possa estar me traindo uma vez mais.
Saque marqueteiro. O lance citado – em que o Giovane decidiu a partida, e o campeonato – pode ser analisado com a mesma profundidade atribuída, mas de outros ângulos, isto é, consignando-se novas visões e, por isso, chegando-se a conclusões variadas. Um mesmo fato nunca é visto do mesmo modo pelos indivíduos presentes. Dentro de um shopingue, ouvi-o relatar esta história, a qual me atrevo a tirar possíveis interpretações. Naquele momento limitei-me a ouvir e esboçar um leve sorriso, pois não o conheço o suficiente para julgar. Contudo, como atleta de alto nível, suas qualificações estavam demasiadamente reduzidas, isto é, era um excelente “passador” e “atacante de entrada de rede” que, como dizíamos antigamente, “atacante de uma bola só”. Invariavelmente, os levantamentos para ele – sempre na “entrada da rede” (IV) – eram de bolas “chutadas” (rápidas) à meia altura e suas cortadas orientadas para a “diagonal” (entrada de rede adversária). Raríssimas vezes foi visto buscando outros pontos da quadra. Bem mais tarde, foi lançado como “atacante de bolas chutadas no meio de rede” com excelente aproveitamento, pois ninguém até então realizava este tipo de ataque. Seu saque nunca foi o ponto forte e, numa final, no ponto decisivo, não acredito mesmo. O atleta russo de entrada de rede (IV) fez golpe de vista e a bola tocou a linha. “Incrível, mas valeu”!
Conclusão. Voltando aos comentários do saque que decidiu um mundial, em igualdade de condições um detalhe pode fazer a diferença numa partida de voleibol. E no alto nível temos visto inúmeros casos através dos anos. Sorte, acaso, fatalidade? O leitor saberá tirar suas conclusões. Um cronista de basquetebol disse certa vez: “O jogo deveria ter um minuto de duração e o placar inicial partiria de 100 a 100”! Parece que estamos todos habituados a só perceber os detalhes no final das partidas; as outras fases parecem ser dispensáveis. Além disso, considere-se que um atleta fora de série não é aquele que ostenta o maior número de títulos, mas o que possui todos, ou quase todos os fatores necessários para a prática de uma modalidade esportiva, em altíssimo grau de adequação. Dessa forma, será muito pouco provável encontrar no voleibol moderno alguém com tais características, haja vista que os diferentes fatores – podemos dizer os fundamentos – estão distribuídos taticamente entre os componentes de uma equipe. Assim, são premiados (estatisticamente) “o melhor passador”, “melhor defesa”, “melhor levantador”, “melhor atacante”, e por aí vai… Isto me faz lembrar dois fatos que deixo para os leitores pensarem:
1º) Conversa com excelente profissional da equipe técnica da seleção brasileira masculina; indagado sobre o desempenho de um dos atletas no Mundial da Argentina (2002) disse-me categoricamente: “Ele foi eleito o melhor atacante do torneio”! No que retruquei: “Na minha primeira aula de Estatística o professor nos alertou para o perigo das conclusões apressadas, pois há que ter bom senso para interpretá-las”. E nova pergunta: “Por que então o atleta não jogou as duas últimas partidas, as finais”? Não houve resposta… (e não estava contundido)
2º) No início do apogeu do vôlei nacional – em 1984 – as atenções gerais estavam voltadas para três excelentes jogadores, os destaques da equipe: Bernard, Renam e Xandó. Os dois últimos com características semelhantes de ataque, principalmente vindos do fundo da quadra. Nessas circunstâncias, eram desobrigados da recepção do saque, com a missão exclusiva de ataque pela saída de rede com extrema potência. Ocorre que para não sofrerem a ação de bloqueio duplo, o que lhes prejudicava a eficiência, fazia-se necessária a participação do não menos excelente Bernard pelo meio da rede atraindo para si o respectivo bloqueador, pois era ágil e hábil em bolas rápidas, tendo para isto muita velocidade de braço. Isto fazia com que lhe fosse dada especial atenção, o que contribuía para liberar os atacantes de “ponta” (da rede) de bloqueios duplos, inclusive os que vinham do fundo (Renam e Xandó). Em muitos jogos pude ver a dificuldade que ambos possuíam e mais ainda, até de atacar com eficiência quando não tinham a possibilidade das “corridas de impulsão”. Enquanto isto, Bernard era o melhor passador – recepcionava e imediatamente atacava – e o mais eficiente, ainda que com bloqueio altíssimo à sua frente pelo meio de rede. Com certeza as estatísticas não detectavam as fintas (sem bola) que liberavam os dois “pontas” para as suas potentes cortadas.
No excelente texto do português Arlindo Miranda (sovolei/A Nossa Missão, Zona 7), ele reporta ao mesmo lance, agora com alguns detalhes do técnico Bernardo: “Perfeito: golpe forte, bola dentro, quase na linha (15-13). Éramos Campeões do Mundo. Uma curiosidade. Na manhã do jogo tínhamos acabado de treinar quando Giovane continuou se exercitando mais um pouco nos saques. Todo o mundo já estava se encaminhando para o ônibus e ele lá, testando um golpe, mais outro, outro mais. Acredite ou não, ele confidenciou aos companheiros qual era o objetivo do treinamento extra: ‘Estou caprichando no saque que vai acabar com o jogo’. A quem pensar que dei a Giovane uma instrução do tipo ‘Vai lá e saca na linha’ esclareço que não sou um estrategista tão poderoso. O que eu disse a ele foi muito diferente: ‘Giovane, entra e não perde o saque, pelo amor de Deus’. E quem pensa que ele fez somente o último ponto do jogo também se engana: os últimos 3 pontos foram dele”.
Antes do Mundial da Argentina a que me referi anteriormente, fui conversar com o Bernardo na Escola de Educação Física do Exército, no Rio de Janeiro, onde estava treinando a seleção. Queria mostrar-lhe que o atleta André Nascimento, canhoto, apesar de ser um dos melhores atacantes do mundo, apresentava (a meu ver) deficiências contornáveis que, se sanadas, aumentariam o seu potencial de acertos. Disse-me o treinador: “Infelizmente não há tempo agora para corrigi-lo”. E lá foram para a Argentina, retornaram campeões do mundo e o referido atleta, o “maior pontuador” dos jogos. E, pasmem, não atuou nas duas últimas partidas (as finais). Passados alguns anos, de repente o Giovane treina alguns saques antes de um jogo e é endeusado. Parece milagre?
Estratégias em jogo. E, por falar em ser ou não ser estrategista poderoso, tenho certeza de que o Bernardo é. Sabe liderar, mexer no time, fazê-lo vibrar e, mais importante, sabe conquistar a confiança do grupo. Mas isto não o torna o dono da verdade. A seu favor, lembrem-se do último set em que o Brasil venceu a Rússia na recente Liga Mundial: a equipe passou a colocar a bola em jogo no momento do saque, preocupando-se somente com os bloqueios. O que mudou o rumo do set e da partida. Sorte, azar? Não, pura competência estratégica. Quando se iniciou no voleibol, treinou no Fluminense, no Rio, com o competente Bené (artigo no Procrie). Com ele aprendeu a utilizar o saque estrategicamente. Quando treinador do feminino, no momento do saque, exibia uma placa de cartolina com a numeração correspondente onde a atleta brasileira deveria direcionar o saque, providência que funcionou por bom período. Todavia, se ele (Bernardo) prestou atenção, provavelmente deverá providenciar o aprendizado do saque tático que, positivamente a equipe brasileira ainda não aprendeu (ou não houve tempo para aprender).
O tempo, a memória, os interesses e as interpretações – a história de cada um – muitas vezes são antagonistas; em outras, nos auxiliam. Você conseguiria distingui-las umas das outras?

